15/07/2017

Delicadeza - Poema de Eduarda Chiote





Essa delicadeza, cada vez mais difícil, pela qual se perde
a vida, como a entendo,
pratico.
Essa subtileza de pesadelo branco, como a sinto
extrema sempre,
às vezes.
Ingénua - um animal discreto; sem dono
e sem direitos.
Por ela arrisco um aceitar alguém
que nunca foi
criança.
Um ler que me não prende mais a atenção, um ser gentil
para com uma pessoa ingrata
- um cultivar uma paixão isenta
"dos cardos do contacto".
Um não precisar esclarecer seja o que for,
pois tudo na vida é afinal
bem mais sério
do que parece.
É por essa gentileza
que se um grito me chega ao ouvido
prefiro escutar nele o cheiro de um corpo que se perdeu
do meu
e ainda assim dizer
Deus seja louvado,
oxalá ele consiga agora ficar
silencioso qual rasto de leitura sem palavra.
Sim, é por essa gentileza, mulher poeta ou homem sensível
- não me distingo nem de um nem do outro -,
que muito embora as minhas esperanças
se tenham desfeito há muito
me permito, e não obstante um total desencanto,
acreditar, ainda, numa simpatia sem despeito;
pois e em virtude dessa mesma gentileza,
não quero saber mais do que me dizem
ou confiar menos do que o desapontamento
me permita.
Estou consciente
de que as criaturas ou coisas imprestáveis podem ser justas
e belas,
e de que chegaremos, meu delírio,
à mansidão, se o coração enciumado
se não puser de fora
- se o coração se tornar generoso e vigilante
como a espera das folhas
de que a copa carece
em pleno inverno.

Por isso, se te disser que sinto frio,
que a água da chaleira
evaporou,
mas que de vez em quando sempre,
às vezes,
o embaraço do vapor em que ela se dissolve
deixa uma gota mais aflita
no desamparo em que me acolhes,
lembra-te da comoção
que me embarga a voz, quando, após uma longa
ausência, apareces, para e de cada vez
que tal acontece, te ires
definitivamente
embora.


Eduarda Chiote, in 'Não me Morras'
(www.Citador.pt)



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